Atingindo a Totalidade através da Integração da Sombra, o Lado Sombrio da Alma
- Luciana Pirk
- 17 de mar. de 2020
- 9 min de leitura
Atualizado: 19 de mar. de 2020
“Dentro de cada um de nós há um outro que não conhecemos.” ~ Carl G. Jung

Carl G. Jung define a sombra, na psicologia analítica, como um aspecto inconsciente da personalidade com o qual o ego não se identifica. O ego, quando operando em sua maior capacidade e, digamos assim, “comandando o show da nossa vida”, escolhe quais características lhe são interessantes e reprime aquelas que não lhe convém. Dessa forma, muitos aspectos que formam a totalidade de nosso ser são colocados em segundo plano e não são aceitos conscientemente. Esse tipo de atitude fortalece o ego no sentido tanto individual quando coletivo, pois o ser passa então a viver sob a falsa pretensão de perfeição, vivendo em negação de suas próprias limitações.
“Infelizmente, não há dúvida de que o homem é, no geral, menos bom do que imagina ou deseja ser. Todo mundo carrega uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada na vida consciente do indivíduo, mais negra e densa ela é. Se uma inferioridade é consciente, sempre é possível corrigi-la. Além disso, está constantemente em contato com outros interesses, para que seja continuamente sujeito a modificações. Mas se é reprimido e isolado da consciência, nunca é corrigido.” ~ Carl G. Jung
Vivemos em uma sociedade dualista e julgamos pessoas, situações, etc., de acordo com dois polos extremos: o bom e o mau, o certo e o errado, o céu e o inferno, dia e noite, nascimento e morte e por aí vai. Entretanto, essa visão não é realista, visto que nossa vida é vivida muito mais na área cinzenta, onde encontramos pontos de interseção entre os polos e muitas vezes somos incapazes de definir um veredito firme sobre algo ou alguém.
Com essa necessidade de estabelecer rótulos e títulos, acabamos fazendo isso não somente para os outros, como para nós mesmos. Porém, quando se trata dos outros, é infinitamente mais fácil rotular negativamente. Quando falamos de nós mesmos, sob a falsa pretensão do ego de perfeição, focamos apenas no que é bom e certo, no que é conveniente e socialmente moral. Assim, nos conscientizamos e aceitamos, muitas vezes erroneamente, apenas daquilo que podemos rotular no polo positivo da nossa personalidade.
Para Miller in Zweig e Abrams – O que a sombra sabe: uma entrevista com John A. Sanford (2011):
A definição junguiana da sombra foi muito bem colocada por Edward C.Whitmont, analista de Nova York, ao dizer que sombra é “tudo aquilo que foi reprimido durante o desenvolvimento da personalidade, por não se adequar ao ideal de ego. Se você teve uma educação cristã, com o ideal do ego de ser benevolente, moralmente reto, gentil e generoso, então certamente você precisou reprimir todas as suas qualidades que fossem a antítese desse ideal: raiva, egoísmo, loucas fantasias sexuais e assim por diante. Todas essas qualidades que você seccionou formariam a personalidade secundária chamada “sombra”.
O resultado disso é, então, a repressão de aspectos de nossa personalidade e caráter que julgamos ser maus e errados. Com isso, não apenas reprimimos essas qualidades do nosso ser, como também nos tornamos cegos a elas. Não as enxergamos em nós mesmos, porém as enxergarmos nos outros, através do conceito de projeção.
Jung afirma que “a projeção é um dos fenômenos psíquicos mais comuns. (…) Tudo o que é inconsciente em nós mesmos descobrimos no vizinho” e “a bem dizer, não se faz uma projeção, ela simplesmente ocorre”. Dessa maneira, tudo aquilo que existe em nós, enxergamos nos outros.
E esse conceito não se aplica à projeção da sombra de maneira exclusiva, visto que enxergamos nos outros também qualidades positivas, não apenas negativas. Dessa maneira, se intencionalmente prestarmos atenção naquilo que somos capazes de reconhecer nos outros, traremos à consciência de maneira clara aquilo que existe em nós em sua totalidade. Se enxergamos bondade, generosidade, alegria, amor etc., em nosso vizinho, ou seja, no nosso próximo, ela existe em nós. E igualmente, se enxergamos nele inveja, ganância, inclinação ao “mau” de qualquer forma, é porque essas qualidades vivem em nós.
"As projeções transformam o mundo na réplica do próprio rosto desconhecido" ~ Carl G. Jung
O que acontece é que, normalmente, não nos atentamos a isso e definimos que tudo que enxergamos e julgamos no outro trata-se de algo que é exclusivo dele. Pois claramente é muito mais fácil julgar o outro e olhar para fora, do que julgar a nós mesmos e olhar para dentro.
“Sua visão se tornará clara somente quando você olhar para dentro do seu coração. Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, desperta.” ~ Carl Jung
Assim, o processo de integração da sombra com fim de nos tornarmos pessoas completas e conscientes começa com a aceitação de todos os aspectos que nos fazem quem nós somos de verdade, sem ilusões. Para tal, a conscientização de que projetamos nos outros aquilo que existe em nós é uma ferramenta importantíssima. Enquanto é extremamente válido e importante trazemos à consciência também nossas características positivas, como estamos falando da nossa sombra, Jung e o escritor e pintor alemão Hermann Hesse têm algumas dicas:
Segundo Jung, “Tudo o que nos irrita nos outros pode nos levar a uma compreensão de nós mesmos.” e segundo Hermann Hesse, “Se você odeia alguém, é porque odeia alguma coisa nele que faz parte de você. O que não faz parte de nós não nos perturba.”
Logo, ao sabermos disso, podemos estar mais atentos em nossas interações diárias, buscando tomar para nós aquilo que enxergamos no outro e nos irrita. Ao pensar que, baseado na projeção, apenas vemos no outro o que existe em nós, se algo nos irrita nele é porque essa qualidade está presente em nosso ser. Se nos irrita é muito provável que seja parte de nossa sombra reprimida, visto que o ego não a aceita e não permite sua expressão.
A integração da sombra exige de nós muita intencionalidade e persistência, uma vez que se trata de um auto confronto e uma batalha contra o ego. Dificilmente aceitamos o confronto de terceiros quando vêm apontar em nós falhas, imagine então trabalhar conscientemente para retirar de nós mesmos todas as máscaras que fomos construindo ao passar dos anos.
“A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade.” ~Carl G. Jung
Integrar nossa sombra exige de nós não apenas intencionalidade e força de vontade, mas também que deixemos de lado todos nossos preconceitos e julgamentos, tudo que foi construído baseado principalmente no ego e suas ilusões. Precisamos olhar para nós mesmos de forma objetiva e aberta, a fim de aceitar em nós e nos outros traços não agradáveis e não favoráveis.
Nesse processo nos deparamos com qualidades que antes julgávamos ser inaceitáveis e irremediáveis. Ao nos olhar objetivamente descobrimos em nós aspectos de nosso ser que não nos agradam. Porém, tudo que trazemos à consciência nos liberta.
"O que não trazemos à consciência aparece em nossas vidas como destino." ~ Carl G. Jung
A sombra não aceita e não integrada, apesar de reprimida, ainda está ativa em nós. Ela aparece de maneira inconsciente e causa danos a nós mesmos e aos nossos relacionamentos. Sua ação acontece nos momentos em que perdemos o controle das nossas emoções, ações e reações. Normalmente ficamos envergonhados sobre a forma como agimos, causamos dor a nós mesmos e aos outros, e dependendo da espessura do véu de nosso ego sobre nossa visão, mesmo com todas as consequências dos nossos atos, continuamos cegos e culpamos os outros por nossos desvios e falta de controle.
“Quanto mais negamos que temos um lado sombrio, mais poder ele tem sobre nós” ~ Sheryl Lee
É dito, talvez não entre os cristãos, que Jesus quando se dirigiu ao deserto por 40 dias e se encontrou com o diabo não estava de fato se encontrando com o diabo, mas com sua própria sombra. Jesus teria então tirado um tempo de autorreflexão para se confrontar com sua própria realidade e todos os sentimentos e desejos que eram vivos nele. Como um homem santo e puro o desejo de poder e domínio sobre povos e nações não seria visto com tranquilidade pelos outros e talvez nem mesmo por ele mesmo, visto que tinha de fato um coração bom que buscava o bem. Porém, ao se olhar abertamente e com objetividade, viu que existia nele também o oposto, o desejo, o “menos bom”, assim ele pôde fazer uma escolha de acordo com a inclinação natural do seu coração.
“Fique feliz por poder reconhecê-la, pois assim evitará se tornar sua vítima.” ~ Carl G. Jung
Pensando na história de Jesus, vimos como é fácil colocar todos esses indesejáveis e inferiores atributos na conta do “inimigo”, como um ser a parte, uma outra pessoa. Porém, o “inimigo” vive em nós, principalmente quando ele está ainda na forma inconsciente. E quando o confrontamos e aceitamos que essas qualidades vivem em nós, podemos então ter controle sobre elas e usá-las de maneira vantajosa para aquilo que intencionamos em nossas vidas. De maneira consciente, em controle de nossas emoções, nos enxergando com clareza, não somos mais levados a ações e/ou reações inconsequentes ou impensadas e podemos utilizar todos os recursos presentes em nossa personalidade e nosso caráter para nosso benefício individual e também para o benefício coletivo.
“Em vez de subir uma escada em busca da perfeição, estamos nos desenvolvendo na totalidade. Não estamos tentando transcender ou derrotar as energias difíceis que consideramos erradas - medo, vergonha, ciúme, raiva -, pois isso apenas cria uma sombra que alimenta nosso senso de deficiência. Em vez disso, estamos aprendendo a mudar e abraçar a vida em toda a sua realidade - quebrada, bagunçada, vívida, viva.” ~ Carl G. Jung
A integração da sombra, que tem início com a conscientização da mesma e depois sua aceitação, tem como consequência a totalidade do nosso ser.
Jung sobre a totalidade do ser:
“Totalidade para os seres humanos depende da capacidade de reconhecer sua própria sombra”
“A obtenção da totalidade exige que se abale todo o ser. nada menos fará; não pode haver condições mais fáceis, sem substitutos, sem compromissos.”
“A totalidade não é alcançada cortando uma parte do ser, mas pela integração dos contrários”
Atingir a totalidade nos leva a iluminação, sobre a qual Jung diz: “Você não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas sim ao tornar a escuridão consciente.”
Tornar a escuridão consciente requer de nós, como dito anteriormente, intencionalidade, esforço e força de vontade. O trabalho é árduo, porém a recompensa é valiosa. A partir do momento em que operamos a partir da totalidade do nosso ser não somos estamos mais cegos nem aos nossos próprios comportamentos e nem aos comportamentos dos outros. Nosso ego não é capaz de nos enganar e pregar peças em nós mesmos e o mesmo é verdade sobre nosso vizinho, nosso próximo. Como reconhecemos em nós a nossa escuridão temos controle sobre ela. Como reconhecemos em nós a nossa escuridão, a reconhecemos no outro e ela não tem controle sobre nós.
“Essa coisa da escuridão, eu reconheço a minha” ~ William Shakespeare
Há uma história na mitologia suméria sobre Inanna, Deusa do Céu e da Força Interior, que desceu ao submundo para visitar sua irmã, a Deusa Ereskigal. Ereskigal representa nossa sombra e a jornada de Inanna ao submundo nossa própria jornada rumo ao encontro, aceitação e integração de nossa sombra:
“Eu fui lá
por vontade própria
Eu fui lá
no meu melhor vestido
com minhas joias mais raras
e minha coroa da rainha do céu
No submundo
em cada um dos sete portões
fui despida sete vezes
de tudo o que eu pensava que era
até eu ficar nua em quem eu realmente sou
Então eu a vi
Ela era enorme e morena, fedida e peluda
com cabeça de leão
e garras de leão
devorando tudo diante dela
Ereskigal, minha irmã
Ela era tudo o que eu não sou
Tudo o que eu escondi
Tudo o que eu enterrei
Ela é o que eu neguei
Ereskigal, minha irmã
Ereskigal, minha sombra
Ereskigal, meu eu” ~ Inanna
De fato, para completarmos o processo de integração da sombra precisamos descer às profundezas de nosso ser a fim de nos deparar com nossos aspectos menos agradáveis e atraentes. Para isso, além de intencionalidade, precisamos de amor. Precisamos abraçar nossa sombra, mesmo que fedida e peluda, com amor e aceitação. Nossa sombra, reprimida, vive no submundo de nós mesmos, escondida na escuridão do nosso inconsciente, esfomeada, esquecida, como uma fera mal amada e carente. Quando a encontramos e a olhamos e nos deparamos com sua realidade, vemos que ela não é algo a ser temido ou aniquilado. Vemos, no entanto, que ela precisa de acolhimento. Ela precisa vir à luz. Ela precisa ter voz. Ela precisa viver no consciente e ter permissão para expressão.
Assim somos capazes de atingir a integração, ao trazermos nossa sombra à luz, ao aceita-la como parte importante de nosso ser. Ao integrar os opostos e aceita-los. Ao aceitar que não somos perfeitos e nem devemos ser. Ao aceitar que acertamos e erramos, curamos e ferimos. Apenas assim poderemos escolher como agir em cada momento, pois a sombra, quando consciente, não nos traz danos. Pelo contrário, ela nos fortalece. Ela nos mostra que está tudo bem nos posicionarmos, que está tudo bem errarmos, que está tudo bem acertarmos.
Consequentemente, a integração da sombra nos liberta para sermos tudo aquilo que sempre fomos e estava escondido de nós, enterrado embaixo de camadas de condicionamento social e familiar, de mentiras e pretensões, de ilusões. A integração da sombra nos empodera e nos revela a nós mesmos, ilumina todos os aspectos do nosso ser e nos permite agir, reagir, sentir e viver de forma equilibrada e consciente, a partir de um ponto de amor e aceitação. Quando vivemos assim vibramos em nossa própria frequência, atraímos para nós as melhores situações e nos alinhamos com nosso propósito e com as pessoas e situações ideais para nossa caminhada nessa Terra. Criamos nossa própria realidade de maneira consciente, pois há coerência entre o consciente e o inconsciente, entre nossa mente e nosso coração, entre o que sentimos e o que fazemos e falamos, pois como a Lei Hermética da Correspondência diz “O que está dentro é como o que está fora”. Nos tornamos alquimistas de nós mesmos, transmutando a escuridão em luz. Nos tornamos escritores dos nossos próprios destinos, criando nossas histórias de vida conscientemente e com os olhos abertos. Nos tornamos seres libertos e livres, prontos para voos mais altos.
“Totalidade - um estado em que a consciência e o inconsciente trabalham juntos em harmonia” ~ Daryl Sharp, em Jung Lexicon
A partir da totalidade somos capazes então de seguir o conselho de Friedrich Nietzsche e nos tornamos quem nós somos.
Digo a ti, então, querido amigo e leitor: “Torna-te quem tu és”.
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